quinta-feira, junho 14, 2007

A hospitalidade servia.


Pedro!
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Dia 30, 2380Km. Sofia, Bulgaria.
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A imagem de um pais, projectada pelo ecran luminoso que normalmente adorna as salas de estar e lugares de refeicao, assim como por outros meios de expressao noticiosa, nao corresponde necessariamente a verdade. Aqui, na Servia, onde a comunicacao verbal (oral) continua, na sua generalidade, a conhecer poucos grandes momentos, a hospitalidade acaba por levar a melhor e a encontrar os seus canais proprios de expressao, virando costas a inteligencia das palavras.

Logo apos sair do internet cafe, em Kraljevo, e um rapazito que no seu parco ingles vem tentar falar comigo a porta de uma loja de fruta. Ainda me preparava para voltar a montar na bicicleta, atando as pontas do saco da comida nas frestas da caixa que se adianta ao guiador, e a moca de um bar que se apresenta:
- Hi, I am Jelana. I work in this cafe. Where are you from? (...) Portugal, really? All with the bike?
... Disse a verdade, que pedalo apenas desde Milano. Falamos ate chegar um cliente e ela ter que voltar para o bar. Segui caminho. O vento acompanhou-me no mesmo sentido. Continuo a encontrar grandes areas de cultivo. Paro apenas em duas ou tres "trgovinas" para me hidratar com nectares servios (que sao bem bons). A porta, partilho sempre o banco, que normalmente existe, com alguem a tomar cerveja, seja a que horas for.

Chego a Krusevac, ao final da tarde. E uma cidade grande, maior que Kraljevo.

Em 2005, em Marrocos, conheci dois alpinistas servios. Fui mantendo contacto (nao muito regular) com um deles, Dragoslav Gogic. E de Krusevac. Apercebi-me de que ficava na minha "rota" ja um pouco tarde. Escrevi-lhe um email nesse mesmo dia. Na esperanca de uma resposta, quando entro na cidade procuro um lugar com internet. Antes, vi uma autocaravana antiga (Mercedes, como o Augusto gosta). Era de ciganos. Pergunto a rapariga, que esta ali ao pe a arrancar umas ervas, se posso fotografar. Ela consente. Aquele que parecia o chefe do clan nao gostou muito e comeca a fazer-me sinal de que quer dinheiro. Eu digo que a rapariga tinha autorizado... Ele comeca a gritar com ela e nesse momento... pe no estribo... ala que se faz tarde! A bicicleta arranca incendiando o alcatrao e foge no inicio do conflito etnicocaravanofotografico.

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A foto da discordia.

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Ja na cidade, junto a estacao de autocarros, um ciclista adianta-se ao meu lado, saudando-me. Pergunto se fala ingles e a resposta e afirmativa. Diz-me que tambem e um "biker", que anda todos os dias. Acompanha-me ate um internet cafe que eu jamais descobriria sem ajuda. Fica na cave do cinema. Negoceia com a rapariga dos bilhetes e a minha bicicleta acaba por ficar exposta no "foyer", junto aos cartazes dos filmes, muito bem acompanhada pelos "Piratas das Caraibas III". Petrovic, ou "Pedro" como todos lhes chamam, e o nome do meu novo amigo. Deixa-me com o seu numero de telefone e um convite para pernoitar em sua casa.

Na minha caixa de email nao havia nenhuma resposta do Gogic. Ja quase anoitecia. Era tarde para voltar a estrada, afastar-me de Krusevac e procurar um lugar para montar a tenda. Decido ligar ao Pedro e aceitar o seu convite. Compro um cartao telefonico e imediatamente um senhor, cobrador de uma zona de estacionamento, se oferece para me ajudar a fazer a chamada. Primeiro, faz-me sinal de que tem que ir ao seu carro buscar os oculos...
Foi muito util, as duas cabines mais proximas nao estavam a funcionar e, escrita em servio, nao me era tao facil perceber a informacao que o constatava. Caminhamos juntos ate uma outra cabine, mais distante. Quando a ligacao se estabelece, o meu novo amigo dos parquimetros despede-se com um sorriso de missao cumprida. Combino com o Pedro, de novo frente ao cinema. Aparece com Andrea, um amigo que veio so para ver a pinta do ciclista portugues.

Havera encontros que so viajando em bicicleta se realizam?

Despreocupado com o lugar onde passarei a noite, alcanco uma cidade quase ao final do dia e, num curto espaco de tempo, surgem maos estendidas que se empenham em ajudar-me, nem que seja apenas a concretizar uma chamada telefonica.

Pedro vive numa casa humilde, mas cheia, muito cheia, de sorrisos hospitaleiros por parte de toda a familia: Jelana, a sua mulher, e as duas filhas, Cristina (13) e Aleksandra (7). Nada me falta. Tomo o duche ja ha muito adiado. Ate uma nova gillete me foi oferecida, pois Pedro fez questao de que nao gastasse do meu "stock". Conversamos a mesa sobre as nossas vidas e os nossos lugares. Pedro e Cristina falam ingles. Jelana apenas percebe e responde em abertos sorrisos. Tem uma expressao tao simpatica... Aleksandra esta mais retraida. Deve pensar: "onde e que o meu pai foi desencantar este?...".

E ali me deito, num sofa forrado a lencol, sentindo-me abencoado por receber tanta hospitalidade. Uma casa onde falta o reboco na uniao dos tijolos, onde apenas uma divisao tem agua corrente, e completa no conforto pelos coracoes que a habitam. Quantas vezes ja percebi que pessoas, nao tendo tanto, sabem dar mesmo muito... Felizmente e uma experiencia que nao me e nova. Ja aconteceu em outros lugares e penso que ver o mundo a partir do dorso de uma bicicleta tera alguma coisa a ver com isso. E um veiculo despretencioso, nao agressivo. Adornar-lo com alforges desperta a curiosidade... e a hospitalidade.

Nesta altura do ano amanhece as 04:30. Jelana levanta-se as 05:30 para ir trabalhar e deixar Aleksandra na escola (pre-primaria). Pedro trabalha numa fabrica, por turnos. Esta de folga. De manha, apos um pequeno-almoco preparado e servido com esmero, saio de casa com o meu amigo. Cristina fica a estudar. E a ultima semana de aulas. Os exames sucedem-se e apertam. Atravessamos a cidade. A saida para Nis, onde me dirigo, coincide com a localizacao da fabrica onde o Pedro trabalha. Ele tem que la ir tratar de uns papeis. Pedalamos devagar, tentando adiar a despedida que acontece, inevitavelmente, junto ao portao da fabrica de pneus.

Escolho, no mapa, a mais clara das estradas. O amarelo palido, quase branco, deve corresponder a pouco transito. E confirma-se. O relevo nao e muito pronunciado pois acompanha a linha ferrea, que atravesso varias vezes. Passo por muitos pequenos lugares habitados e por varios cruzamentos.
Durmo a sesta a porta do que ja foi um "Dancing Club" rural e saceio o apetite pos-despertar na cerejeira que me fazia sombra.
O ceu anuncia chuva e, como sempre tem acontecido, nao se trata de falso alarme. Vou alternando periodos de "pedal" com periodos de abrigo.

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Num desses momentos, em que esperava por uma aberta partilhando o refugio do alpendre com molhos de canas de milho, um senhor tenta comunicar comigo. Ja entendo algumas palavras servias (pois o idioma e comum, com variantes, desde a Eslovenia) e percebo que tenta saber de onde venho. Diz-me que um dos seus filhos ja foi de bicicleta ate Izmir, na Turquia.

A luz do dia comeca a inclinar-se para outros quadrantes e encontro-me a porta de outra casa, "semi-em construcao", "semi-abandonada". Nunca mais param aqueles circulos na poca de agua em frente... Quando a chuva abranda, decido continuar mais um pouco. Paro numa loja para comprar pao. Ja nao ha pao... Mas o senhor faz uma chamada para tentar conseguir. Nao... ja nao e possivel. Compro uns sumos e uma sopa instantanea (canja de galinha). Tenho uma lata de "porco com feijao" (sem a qual o Pedro nao me deixou sair de casa nessa manha) e ainda me resta gas no fogao. Assim que, mal nao vou passar. O senhor da loja ainda me pergunta aonde me dirijo. Respondo: -Nis.

-Nis?! Mas isso e na direccao de onde vens (entendo nos seus gestos)!

Desenha-me um mapa em papel de merceeiro e, complementado com o meu enrugado mapa servio, percebo que me tinha enganado em algum cruzamento. Desolado por me dar tal noticia tenta oferecer-me um cafe, ou uma Fanta... Recuso gentilmente, tocando o peito e pronunciando sucessivos "Hvala" (Obrigado). Nao se da por vencido e oferece-me dois pacotes de cafe instantaneo e repoe a agua das minhas garrafas.
Volto a casa onde antes tinha estado. A chuva esta para durar e ali passarei a noite.
Pela manha, faco alguns Km's de caminho ja antes percorrido e chego a Nis.
E uma cidade grande.

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Nis. Servia.
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Ja existem placas com a indicacao de Sofia, na Bulgaria. Encaminho-me para Pirot.
Novamente desvio por uma estrada secundaria. A paisagem e bem bonita.

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As vezes, dou boleias...

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Nao ha transito algum. Subo ao longo de 10Km (apenas os ultimos eram mais pronunciados). A certa altura, em que registo bastante bem a estrada pois percorro-a descrevendo "S's", minimizando a expressao do relevo, passa por mim... um Ferrari! Mais a frente, esta o Ferrari, na berma, de capot aberto. Desta vez sou eu que o ultrapasso, a "bombar" nos meus 6,1 Km/h!

Encontro de novo a estrada principal para Pirot. Fotografo umas motorizadas. Os seus donos acham piada a curiosidade do turista. Riem-se e dizem: "Kawasaki"!

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Kawasaki!



Bela Palanka, antes de Pirot.

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Passo a noite em Pirot e, pela manha, apos 30 Km, chego a fronteira bulgara. Tenho alguma pena de deixar a servia nao podendo comunicar melhor com o seu povo. Julgo que poderia enriquecer muito aprofundando os contactos.

A Servia despede-se com rectas longas e planas e a Bulgaria recebe-me com uma pequena etapa de montanha. Ainda na Servia, logo apos Pirot, ja encontro placas que referem a direccao de Istambul. Parece que vou no caminho certo. Outra referencia turca sao os pesados camioes que, nao contentes com o ja elevado numero de rodas, querem tomar mais duas...

Cheguei a Sofia. Esta e a primeira capital que visito nesta viagem. Desde a placa que assinala o seu limite, percorro 10Km ate ao centro. Percebo claramente que as classes sociais, e etnias, vao subindo na escala criada pela sociedade a medida que o raio, contado a partir do centro, assume numeros menores.

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Entrada em Sofia.

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Estou muito bem instalado, no "Sofia Backpackers'Inn". Cobram 9 euros por noite. Ontem encontrei uma nota de 20 euros na berma da estrada. A hospedagem na capital ja esta paga. Ficarei um dia na cidade. Sera o segundo dia em que nao pedalo (o primeiro foi em Bovec, na Eslovenia). Tentarei, a partir de aqui, estudar o itinerario futuro. Sei que o pais tem mosteiros muito interessantes e vou averiguar sobre possiveis visitas.

Tenho nocao de que as palavras nao andam muito fluentes. Talvez a pouca comunicacao oral esteja relacionada. Certo e que existe uma caixa que ainda nao percebi por onde se abre.
Assim, ainda mais, Radio Tamarugo agradece muito a companhia e o registo das visitas.
Um grande abraco para todos.

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Life "on the road".


... A terra das "minis"! Dragoman, Bulgaria.


Bulgaria.


Uma ideia de "upgrade" para o Augusto.


Uma foto para o Pena. Eh! Eh!


Very used and very new. Nis, Servia.


Pausa para calorias.


A "Casa das Noivas" ca do sitio.


Servia.

9 Comments:

Anonymous Anónimo said...

OLÁ! Mais uma vez à escuta de Rádio Tamarugo. Acabei de chegar da escola.Tinha a certeza de que haveria notícias , que já comuniquei a terceiros.
Gostei de te ver, meu fofinho! E das tuas deliciosas descrições.Chegaste depressa a Sofia. No mapa parece mais longe.
Não está muito calor? Ainda hoje te mando um mail.
Muitos, muitos beijinhos. Tia

5:46 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Estes maravilhosos relatos fazem-nos pensar na vida!!!!!
Gostámos (sim, está a familia toda a ler a rádio tamarugo) de te ver!
Bjs e boa continuação
Inês, Pedro, Francisco e Bolota

6:49 da manhã  
Blogger pita da vespa said...

A Bolota já sabe ler?
Isto de se ser veterinário tem muito que se lhe diga, tem tem...
A Ana T também já anda a ensinar umas coisitas ao Bowie, mas ele ainda só sabe o "aeiou".
O Alasca é que, segundo ouvi dizer, não gosta muito da escola. É tipo Tom Sawyer :)

Mr. Vitakron, how are you?

Por aqui continua tudo na mesma, inclusive o tempo, que continua imprevisível. No outro dia a RTP resolveu perguntar a umas pessoas de Évora, assim mais de idade, o que achavam desta instabilidade. Houve um que respondeu:
- "Sabe, desde que disseram que o Homem foi à Lua, isto nunca mais foi a mesma coisa...".

Continuação de boa viagem,
Pita

7:37 da manhã  
Blogger pita da vespa said...

Este comentário foi removido pelo autor.

10:09 da manhã  
Blogger pita da vespa said...

oopssss!

Pensava que estava noutro blog :)

10:11 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

...A família toda mesmo! A descrição que fazes faz-nos sentir como se entrássesmos nessa parte do mundo e, quase, como se ao teu lado pedalássemos! Já se torna viciante a leitura dos teus textos! Continua em força!
Bjos, Susana

4:45 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Caro Amigo,
Cada vez fico mais fascinado com a tua desrição dos locais e da humildade dos seus habitantes. Dá que pensar!!!

Força na tua viagem.

Grande Abraço, Nuno Marzia.

10:03 da manhã  
Blogger Sara said...

Hey João!
Como tens tido algumas dificuldades técnicas na comunicação fiz uma pesquisa para ver se encontrava alguma coisa que ajudasse. Infelizmente, em búlgaro só consegui descobrir "zdravey" {olá} e "do vizh dane" {adeus}, de resto nada aparece em caracteres latinos. Espero que ajude.
Continuação de boa viagem. :)

2:26 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Ah ganda João!
Peço desculpa por só te dar uma palavrita agora, mas tenho andado sem tempo, nem net tenho...
Novas da Ponte, já que o Ecos do Sor não chega aí:
-Casámos o Jorge Traquete (onde o Hugo brilhou no Karaoke com a melhor imitação até hoje do ZéCabra)
-O tomás tá na maior, ontem andava na praia a passear o seu Hugo
-O Pena e a tua Mãe já têm computador novo, tá a dizer o Fernando, aqui dos computadores
- O Pena dsque vai aí comprar o lindo barco que fotografaste, diz que já tá farto de ver o dele imaculadinho, sempre a brilhar.
- De resto, é a pasmaceira do costume, a nossa Ponte, isto aos fds parece as aldeias Texanas, só falta o fardo de palha a atravessar a rua com o vento...

Espero que ainda n tenhas usado o imodium, que continues a fotografar tão bem,que o Nestum (com vodca, claro) n acabe, e que sigas sempre com a boa Luzinha do Jesus.

Gandabraço, td a correr bem!

Júlio

10:50 da manhã  

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