sábado, março 18, 2006

Enfraquecer de sinal


_João. Bariloche, Argentina. Fevereiro de 2006. Foto de Cecilia.

"Ven al circuito del desierto,
a la alta aérea noche de la pampa,
al círculo nocturno, espacio y astro,
donde la zona del Tamarugal recoge
todo el silencio perdido en el tiempo"

Pablo Neruda _ Canto General
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17 de Março de 2006. Estou no Hemisfério Norte há 7 dias.
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Muito perto respiram ainda as últimas memórias de Santiago do Chile.
Os derradeiros dias, passados na capital do país por onde tive o privilégio de viajar, são guardados com verdadeiro carinho que destino às pessoas que me acolheram. Mais uma vez confirmei este sopro de sorte que me acompanha e que recheia tantos dias com encontros de uma importância sem medida.
Das várias hipóteses de alojamento disponíveis em San Pedro de Atacama, a casual escolha foi coincidir na pequena distância que separava a minha tenda e as idênticas residências temporárias de tela do Claudio, Lucy, Matias, Mauro e “la abuela”, mãe de Lucy.
Como sou um “chico-silencio”, de tantas e orais palavras travadas por uma inércia de timidez, foi o Mauro que favoreceu a conversão da estreita distância física num alargar de discurso, fluído também em tragos de cerveja e “piscola”.
As “boas-noites” do final deste serão já traziam um convite para jantar no dia seguinte, que seria precedido de uma visita conjunta ao “Valle de la luna”, onde apreciaríamos o especial pôr-do-sol.


_Mauro e Matias, Valle de la Luna. Janeiro de 2006.


_Matias, João e Lucy. No carro, regressando do Valle de la Luna (San Pedro de Atacama). Fotos de Mauro.

Quando nos despedimos, na manhã seguinte a este jantar, tinha o convite para me alojar quando regresasse a Santiago. Autêntico, como se percebe quando não há contornos de cortesia mas um verdadeiro desejo de reencontro.
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Muito caminho e tempo depois, passando por uma feliz tentativa (porque lograda) de reaver os contactos dos meus amigos (que tinham sido perdidos no “pack” entregue ao lado negro da lei) volto a Santiago onde me encontro na mesma manhã com Mauro, “a las 10h00, frente al Estadio Nacional”.
Do tempo que passei, agraciado pela sua companhia, numa disponibilidade sem limites para que a minha estadia em Santiago fosse tão agradável quanto possível, já contei quase tudo no post anterior.
Pretendo com esta introdução fazer mais uma tentativa para reforçar este esboço de agradecimento a pessoas de enorme generosidade que se empregaram tanto, desinteressadamente, em me receber com uma amplitude de braços que não conhece limites.
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A Lucy e o Claudio saíam sempre muito cedo de casa. O Matias era transportado envolto num cobertor e no seu continuado sono.
Apenas ao fim do dia os voltávamos a ver.
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Na última noite que passei em Santiago, mesmo com o cansaço próprio de uma semana de trabalho com horários tão esforçados, os meus amigos não deixaram de propiciar uma despedida tão bonita como o primeiro encontro. Houve lugar para um rico “asado”, com variados acompanhamentos.
Estava também o Julio, licenciado em eco-turismo, amigo de Mauro e de toda a família. Depois do jantar trocámos experiências sobre a carretera austral, onde vive.
Na mesa, claro, copos de “piscola”.
Ofereceram-me um livro de Neruda, “Residencia en la tierra”, com dedicatórias. A tinta de caneta completava a sensibilidade das palavras do autor.


_Claudio, Mauro, Lucy e Julio.

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Com o Mauro, ainda fomos ver um concerto de Hip Hop de “Los Mestizos” a “La Batuta”, discoteca junto à Plaza Ñuñoa.
Voltámos cedo. Não podia iludir as evidências. No dia seguinte teria que embarcar, pela manhã, fazendo valer a segunda parte do bilhete electrónico adquirido na Air Madrid, que correspondia ao regresso.
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Saímos cedo de casa, 08h30, nas nossas bicicletas. O meu aparato sobre rodas voltou à sua configuração mais volumosa e assim, durante cerca de 30 minutos, integrámo-nos no desafio próprio de adaptar pedais a um meio de nervosas e matutinas acelerações a motor.
A partir do centro, parte a cada meia-hora uma autocarro da TurBus. Há pelo menos outra companhia a efectuar o mesmo trajecto mas não têm “maletero” para bicicletas.
Pretendíamos chegar a tempo de tomar aquele que saía às 9h00. O Mauro ainda o viu… a dobrar a esquina. Nada de preocupante, o das 9h30 trazia também uma grande margem de segurança para o embarque no vôo NM 1432, com destino a Madrid.
Estes últimos minutos, até finalmente subir no autocarro, foram preenchidos por um “café solo”, outro “cortado” e um abraço de real amizade com a vontade e certeza, manifestamente mútua, de nos voltarmos a encontrar.


_A caminho do aeroporto. Santiago do Chile. 9 de Março de 2006.

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Muchas Gracias, Mauro, Lucy, Claudio, Matias por vuestra imensa y inolvidable generosidad. Por todo esfuerzo en propiciar que mis dias en vuestra casa y vuestra ciudad fuesen lo más agradables posible. Por tantas lecciones sobre simplicidad. Quisiera saber expresar mejor mi gratitud pero es tanto cuanto alcanzo. Ojalá un dia os pueda retribuir. Seguramente nos volveremos a ver y eso es el mejor aliento.
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O check-in não foi rápido e isento de contrariedades como supunha.
A bicicleta não ia embalada. Apenas removi os pedais, tornei o guiador paralelo ao quadro e esvaziei os pneus. Voltei assim da Argentina e de Cuba (fazendo também dois vôos domésticos em ambos países). Desta vez não foi tão simples. Para embarcar teria que ter a bicicleta revestida de modo a proteger a integridade da bagagem dos outros passageiros. E agora? Faltava uma hora para o vôo e no aeroporto não abunda o cartão…
Acabei por embalá-la, ajudado pela vontade sul-americana em resolver problemas, não perpetuando os iniciais “nãos” em cómodos e definitivos inibidores da vontade.
Dessa maneira, gastei os últimos 5000 pesos (cerca de 8 euros) em celofane. A bicicleta, na vertical, fartou-se de rodar na máquina dispensadora de película plástica, ao ponto de se converter numa disforme massa com características espaciais. Estava realmente… embalada. Poderia mergulhá-la num meio líquido sem risco de corrosão.
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Voltei ao balcão. Esperei de novo pela minha vez atrás do casal que “despachava” um caniche. Cruzaria o Atlântico numa gaiola que me pareceu demasiado reduzida para as 13 horas em que aí estaria confinado.
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Como o bilhete tinha sido comprado pela internet, para levantar o talão de embarque apenas o passaporte me servia de identificação. A referência dizia respeito ao meu anterior documento. Até aí tudo bem, pois na embaixada tinham colocado uma nota, devidamente autenticada, neste passaporte, fazendo referência ao número extraviado.
O problema surge quando me dizem que, no computador, o meu nome está associado a um bilhete “físico”, não electrónico, e me pedem para o apresentar.
Ainda desconheço as razões desta frequência mas, regra geral, tenho problemas com balcões e guichets. Este era suficiente alto para ocultar as inúmeras “tatuagens” de dentes de roda pedaleira, marcadas quase definitivamente com expesso e negro óleo no tecido das minhas calças. Não sei se a aparência é chamada ao caso. O certo é que a atitude do funcionário foi fixar-se a olhar para mim, insistindo com desconfiança que eu teria que entregar o tal “boleto” (que nunca tive). Preocupou-se em confirmar com um colega do lado que a referência dada pela informação do monitor me declarava portador de um bilhete. Só após uma demasiado longa reticência averiguou, finalmente, num telefonema para a companhia, a veracidade da minha “defesa”.
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Através da “Puerta 14” acedi às lojas de souvenirs e demais parafernália das compras de aeroporto. Como não tinha nem moedas para um café passei os últimos minutos a observar o tráfego da pista e telefonei para casa, a “cobro revertido”, como usual.


_Avião "Puerta de Alcala". Santiago do Chile.

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Esta viagem de avião foi um pouco mais aborrecida do que aquela que me levou ao Chile. Não havia filmes e o intervalo entre refeições foi muito distendido, ao ponto de ouvir a palavra “hambre” a partir de vários assentos.
Muito perto de mim viajava um espécime particular de decoro que falava muito alto, bocejava também o mais sonoramente possível entrecortando a amplitude bocal com palavras como “joder, joder, joder…”; chamava as hospedeiras de “guapa, rubia” e similares “apodos” e oferecia-lhes bombons. Quando aterrámos, bateu palmas e cantou, no mesmo esforço para adequar o volume da melodia (de autor) à correcta escuta de todo o avião: “este capitán tiene buenos cojones…”.
Quem precisa de filmes?
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Aterrámos às 05h15. O primeiro avião a pousar em Barajas nessa madrugada.
A demorada espera pelo movimento da cinta de bagagens conduziu à recolha de um alforge da bicicleta completamente trucidado. Alguns dos elementos do seu interior conheceram o mesmo trágico final da sua utilidade.
Envolver a bicicleta em plástico protegeu as demais bagagens das suas formas pontiagudas mas o meu equipamento andou por outros caminhos de tortura.


_Em tempos, foi um alforge de bicicleta.


_ ... mais uma vítima da abrasão da pista do aeroporto (?)

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Os meus pais estavam à minha espera. Viajaram no dia anterior e andaram na noite madrileña até serem horas de nos encontrarmos, finalmente abraçarmo-nos e encerrar o capítulo das saudades.
O meu pai conduziu em todo o imediato regresso sem que o pudesse ajudar pois a minha carta de condução (que tinha levado ao Chile) conheceu o mesmo destino (lá para os lados de Puerto Montt) que o outro, menos rosado e mais “grenat”, elemento de identificação.
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Há tantos dias que estou cá, com acesso permanente à internet e deixei cair a frequência destes relatos para o nível zero.
O regresso não é de todo fácil. Quase imediatamente, troquei o selim da bicicleta por uma cadeira menos confortável, os encantos de um caminho feito pela primeira vez por um espaço fechado, artificial e mal ventilado; os surpreendentes encontros de um país tão hospitaleiro por uma conhecida rotina com tantas situações “de plástico” (como diria o Augusto).
Voltei mais rico, sem dúvida. É um grande privilégio poder “pôr o pé na rua”, conseguir partir sem maiores receios e ter, superando o que alguma vez pude imaginar, vivido tão generosos gestos.
O Chile foi uma aposta com um nível muito baixo de “riscos”. Tinha a confiança de viver a hospitalidade que experimentei na Argentina, a “dose” de soberbas paisagens traz brilho aos olhos para muitos meses, “aclarando” momentos com menos luz, e já sabia que me sinto bem avançando a golpes de pedal, para além de, por si só, a bicicleta ser um catalisador de simpatias.
A grande surpresa foi este blog. A maioria da, pouca, leitura que faço refere-se a literatura de viagens (na sua maioria em castelhano, onde o leque de oferta é bastante extenso).
Quis experimentar estar também “do lado das letras” nesta viagem. O que nunca pensei foi ter tantas respostas. Tantas pessoas fielmente envolvidas. Deixei mesmo de andar sozinho e tornou-se este “contacto” em algo grande, tão significativo como a própria viagem. Pedalava pensando em quem me haveria respondido, esforçava-me por corresponder à dedicação.
É para mim, esta “compilação”, um documento muito, muito importante. Para além de ser um registo de momentos e sensações da viagem (que perderia do lado útil da memória, inevitavelmente, se não os tivesse escrito) está recheado de carinho, de visitas constantes, muitas felizes surpresas, “confirmações” de afecto e de muitas palavras que se calhar nunca seriam ditas.
Devo muito ao facto de os pontos de internet serem o “negócio do momento” no Chile, o que favoreceu alguns picos de potência da Rádio Tamarugo em zonas insuspeitáveis.
Apenas posso esboçar uma tentativa de agradecimento pela vossa constância, pela vontade ricamente manifestada de me acompanharem; bem haja também a quem nunca se apresentou mas que suspeito ter sido visita, mais ou menos, assídua.
Espero que tenha sido um prazer “partilhado”. No que me toca, sei que me fartei de ganhar com esta “troca”.
Agradeço a quem, “em terra”, fez com que estas “novas” sempre chegassem à gerência (os meus pais) acompanhadas do correspondente e efusivo alarido (muito obrigado, Jorge e Rui Martins).
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Agora, Rádio Tamarugo tem que viver um enfraquecer de sinal. Não é uma porta já fechada mas que se encosta. Está dependente do vento e das suas caprichosas correntes de ar saber que movimento terá.
Criei uma caixa de email: radio.tamarugo@gmail.com
Quem estiver interessado em receber informações acerca de eventuais aberturas de transmissão poderá enviar o seu email. É a garantia de um aviso.
Há, em projecto, a ideia e vontade de organizar uma viagem, em grupo, de bicicleta pela carretera austral, com carro de apoio, entregando toda a logística inerente ao itinerário.
“Pré-interessados” em ter informação acerca destas “movimentações” podem deixar também um contacto.


_Sendero de Alerces. Parque Pumalín. Fevereiro de 2006.

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Mais uma vez, sem nunca ser demais, muito obrigado,
eu deitei a semente, tamarugo cresceu graças a todos.

10 Comments:

Anonymous Anónimo said...

OLÁ, João!
Julgo que é suposto ninguém reagir ao teu último texto. Mas não me contenho. Acabo de lê-lo e , como já te havia confessado esta semana, já vim várias vezes à rádio Tamarugo , com uma inexplicável sensação de quem aguarda qualquer coisa, mesmo sabendo que não há razão para que ela venha. De facto, estás aqui ao pé, ainda que a uns quilómetros de distância.
Concordo contigo : esta experiência que tu em boa hora quiseste partilhar connosco deixou-nos uma doce recordação, pelas ternuras talvez nunca antes tão intensamente verbalizadas. Eu sofri com as tuas dificuldades, vibrei com as tuas conquistas, emocionei-me com as tuas alegrias... E ainda agora mesmo uma lágrima me humedeceu o olhar ao ler a tua prosa tão bonita e ao constatar mais uma vez a delicadeza da tua sensibilidade.Já te agradeci pelo que me revelaste e esta é a palavra com que termino:obrigada.
Tia

8:39 da manhã  
Blogger pompino said...

Oi, João, escrevo-te agora porque so ontem soube onde tinhas andado e do teu blog pelo pedro&cygny. com a (des)vantagem de poder agora ler tudo de uma vez. para mim que sofro do sindroma LP (Lonely Planet) (tal como tu acredito eu), esta tua radio tamarugo esta entre uma analgesico e um acelerador de crise aguda. ha sempre um nova viagem no horizonte...a ver se nos encontramos por aí! pedropedrosa

8:59 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Caro João,
Como vês as novas tecnologias também ajudam os viajantes em terras longiquas...e fico muito contente por ver que ao aderires às mesmas deste-nos o prazer de acompanhar mais uma das tuas aventuras...
Grande Abraço
Nuno Marzia.

6:50 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Confesso que acompanhei esta viagem sempre com vontade de fazer uma... parecida.È com entusiasmo que sei da novidade e no próximo passeio da ciclonatur à serra do sicó, vou já saber se eles por acaso estão metidos nisso. Mesmo que não estejam, deixo o meu endereço para estar a par... Parece que o que se "encontra", vale a pena!
Bom caminho!

7:10 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Hey Joshua!

Mal saíste da Casa Azul, vim dar uma leitura rápida ao último post.
Depois, limitei-me a baixar um pouco o rádio. Mas mantenho-me sintonizado. Embora já conheça a programação para os dias próximos: subidas e descidas sem floresta densa a envolvê-las, mas muitas subidas e descidas em prováveis caminhos sinuosos...

p.s. a história já conheces mas fica o convite para revisita-la: http://umamaocheiadeareia.blogspot.com

6:10 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Querido amigo:
Resta-me agora dizer-te que foi uma honra e um prazer poder "acompanhar-te" em tempo (quase) real na tua viagem. Nem consigo imaginar as saudades e a nostalgia que trazes contigo, mas espero que este registo da tua aventura te faça sentir melhor.

Por estes lados, estamos ansiosos por te ver e por ouvir todas estas estorias contadas pela tua boca.

Até breve!

2:15 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Distraí-meuns dias e só agora por aqui passei. Sê bem aparecido de volta pelo hemisfério norte!
Estou interessado por esse projecto em preparação de "carretera austral". Dá notícias sobre isso:
alvaromoura@hotmail.com

Um abraço
Álvaro

5:05 da manhã  
Blogger josé tapadas alves said...

«Com apertos de mão acompanhdos de uma série de pomposos lugares comuns...dissemos adeus à hospitaleira terra chilena» Ernesto Guevara (Notas de Viaje)

viagem e diario simplesmente espetaculares....

abraço, zé tapadas

11:38 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Hey, Joshua!
Então não sintonizaste o canal?

Se houver uma nova frequência, diz.
Na Casa Azul, estamos impacientes pelo saquinho de caril.

Pena

2:55 da tarde  
Blogger Fritz said...

tenho estado a ler os teus diarios. tens passado por sitios magnificos e apercebo me que tens aproveitado os momentos.
continuação de uma boa caminhada
Um abraço do Hugo e um beijinho da Teresa ( o Tiago acaba as aulas esta semana )

1:17 da tarde  

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