quarta-feira, março 01, 2006

Barcaza Alexandrina




Enquanto assitia, em Puerto Cisnes, ao dilúvio universal, recolhia madeiras e consultava acerca do preço de "clavos" na "ferreteria willy", para construir a minha "arca", tive conhecimento de que, cada "Martes" saía um barco para a ilha de Chiloe.
Estava saturado de chuva. Cada vez que punha o pé na rua regressava como que de uma imersäo. Felizmente o fogäo da Sra. Luz Eliana Altamirano Monje carburava sempre farto de lenha e pouco lhe incomodava que o adornasse com a minha roupa e que as botas fossem já assídua companhia dos tachos.
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Comprei a passagem para Quellón (no extremo sul da ilha grande de Chiloe) num "centro de llamados", na parte mais alta de Puerto Cisnes, onde também vendiam artesanato feito com "piel de pescado".
Esse dia foi quase inteiramente dedicado à leitura, na biblioteca municipal, de uma selecçäo de contos sul-americanos sobre naufrágios (consulta apropriada para a viagem que se aproximava...).
Também consegui trocar 20 dólares com o "gasolinero".
O Sr. Mariano, dono da "Ferreteria Willy", era outra opçäo (por ir frequentemente à Argentina) mas näo o consegui encontrar.
Mais uma vez, voltei ensopado à "hospedaje". Desta vez, acenderam uma salamandra na sala onde costumava estar. Aproveitando o privilégio, lavei roupa, que se secou "al tiro".
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Näo tenho imagens de Puerto Cisnes porque chovia constantemente e por näo querer classificar de "out of order", duas câmaras fotográficas no espaço de um mês.
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Ao seräo, assisti na televisäo ao directo da última noite do festival Musical de Viña del Mar, com Franz Ferdinand.
A partida do barco estava prevista para as 06h30.
Cheguei a essa hora ao cais, ainda de noite, sem chuva. Começando por ser um minúsculo ponto ao longe, a rampa do transbordador só tocou o cais por volta das nove.
Nesse tempo de atraso conheci a Andrea que introduziu conversa com "se hace larga la espera...". Esteve 3 meses a trabalhar em Puerto Cisnes, no restaurante "El Panorâmico" e agora voltava para a sua casa em Temuco. Acabou por ser a minha companhia de toda a viagem.
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Ainda tentei que a única carrinha de caixa aberta que embarcava me transportasse a bicicleta para poupar esse bilhete mas o condutor näo se mostrou disponível. Tive que pagar 7700 pesos. Na verdade, é um valor exorbitante para um objecto que pouco pesa e cujo espaço ocupado no ferry näo tem significado. A minha passagem custou 10.820 pesos (preço de turista, com direito a "butaca" - assento pullman).
A barcaza já vinha de Puerto Chacabuco, a sul. Trazia alguns camiöes e duas ovelhas.
Quando embarcámos, no "salon-comedor" havia várias pessoas a dormir no chäo.
Pouco depois, começou de novo a chover.


_Saída de Puerto Cisnes

A viagem seria de 24 horas.
A Andrea näo tinha conseguido bilhete de "butaca" e disse que näo dormiu nada na noite anterior, nervosa de perder o barco. Vesti-me de cavalheiro e ofereci o meu lugar para que descansasse. Como recusou, nessa manhä entreguei o meu sono, mais uma vez, à posiçäo pouco cómoda de uma banco de autocarro em versäo marítima.
Quando despertei já näo chovia. Passei muito tempo no "terraço", vencendo o frio para ganhar a vista. Percebi que o "melhor lugar" era encostado à quente chaminé do motor. Havia duas. Era só escolher qual a menos fustigada pelo vento.
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A primeira paragem foi na Isla Toto. Como a barcaza näo se podia aproximar pelo estreito canal que levava à povoaçäo, atracou numa pedra e foram chegando vários botes impulsionados por motores de 40 cavalos. Traziam e levariam passageiros e carga.



_Isla Toto

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Em toda a viagem só vi quatro "toninas" e um lobo marinho. Falaram na possibilidade de avistarmos baleias mas a expectativa näo se concretizou.






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Como andava "corto de plata", pesos chilenos, os únicos investimentos no balcäo da cafetaria foram em dois nescafés, estrategicamente adquiridos nos piores momentos de frio.
Tudo o resto que ingeri foram os meus aprovisionamentos de mais sandes de queijo e "cecinas variadas" (fatias de mortadela de várias cores e níveis de gordura semelhantes). A fechar a variedade do menú, que se repete há 5 ou 6 dias, havia maçäs e pêssegos.
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A barcaza voltou a parar em Santo Domingo. Um lugar onde parecia haver apenas uma casa. Alguma estrada também haveria, porque embarcou um carro.


_Santo Domingo

A faixa de água por onde navegamos é chamada de "mar interior".
A origem desta singular geografia deve-se a fenómenos geológicos e climáticos: o movimento da crosta terrestre e o período glaciar.
Este longo período cobriu a zona com uma expessa e pesada camada de gelo que afundou o "Vale Central" (entre o continente e a actual ilha de Chiloe). Os glaciares desceram pelas rupturas da superfície terrestre, erosionando-a e gerando os actuais vales e "fiordos". Ao derreter-se o gelo, o mar ocupou o "Vale Central" e penetrou pelos "fiordos", criando este esplêndido "mar interior", onde os cerros mais altos sobressaem como ilhas do arquipélago de Chiloe.
A "Ilha grande de Chiloe" é a segunda maior ilha sul-americana, depois da Terra do Fogo, tendo 180 Kms de Norte a Sul.


_Raio X à caixa toráxica.

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_Cai a noite no mar austral.

Quando o barco se deteve em Melinka eu já tinha sucumbido às forças de Morfeu. Aí entrou muita gente.



Pela manhä, o "salon comedor" já näo tolerava mais sacos-cama e havia 6 "igloos" montados na popa.


_Primeira tenda montada na popa.

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Chegámos a Quellón por volta das 11 da manhä.


_Chegada a Quellón.

A Andrea foi comprar um bilhete nos "buses Cruz del Sud" para Ancud, no norte da ilha, e eu dei início à jornada de pedais que terminou aqui, em Chonchi, a cerca de 75 Km do ponto de desembarque.
Penso cruzar a ilha em 3 dias. A norte, uma pequena travessia deixar-me-á a 95Km de Puerto Montt, até onde pedalarei, para recolher alguns livros que deixei guardados e tomar um autocarro a Santiago.
Desde Puerto Montt a Puerto Cisnes fiz cerca de 560 Km através da maravilhosa carretera austral. Pensava chegar a Coyaique, (150 Km, a sul) e regressar em autocarro, que faz parte do traçado através da Argentina, a Puerto Montt. Assim, com esta travessia marítima, farei uma volta circular, com retorno também em bicicleta.


_Tinham-me dito que Chiloe seria plano. É quase sempre assim...

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Chonchi é bastante bonito. E pequeno.







_Conchi.

Talvez o local mais interessante seja a igreja. Está construída em madeira como outras de Chiloe. 70 delas pertencem à chamada "Escuela Chilota de Arquitectura Religiosa". As primeiras foram construídas integralmente em madeira, com as suas partes unidas por "tarugos" (encaixes de madeira), em vez de pregos.
Estas säo, junto a algumas existentes nos Estados Unidos, Alemanha e países escandinavos um dos poucos exemplos mundiais de arquitectura em madeira do século XVIII. Por isso foram seleccionadas entre os 100 monumentos do Mundo em risco de desaparecer e 16 de elas foram declaradas, pela UNESCO, como "Património da Humanidade" no ano 2000.
Nesta privilegiada lista encontra-se a "Iglesia de San Carlos de Borroneo", em Chonchi.
A sua construçäo foi iniciada pelos Jesuítas em 1754 e ficou por concluir até 1859 quando foi finalizada em estilo neoclássico.
Este templo é um dos maiores da ilha, com 730 m2.




_Exterior e interior da Iglesia de San Carlos de Borroneo, em Chonchi.

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Outro pormenor arquitectónico muito presente nas construçöes de Chiloe säo as "tejuelas".


_Construçäo "forrada" com "tejuelas".

Este é um versátil material de construçäo chamado originalmente "pizarrilla" pois na Idade Média, na europa eram usadas lajes de pedra "pizarra".
A sua actual divulgaçäo deve-se aos colonos alemäes que se estabeleceram em Llanquihue, Puerto Montt e arredores de Ancud (Chiloe) e que as empregaram com profusäo nas suas construçöes.
Trata-se de tábuas de madeira de alerce, muito finas, estreitas e compridas (até 90 cm). Säo colocadas umas sobre as outras numa capa tripla, para evitar a penetraçäo da chuva. A parte visível da "tejuela" é um terço do seu comprimento total e, dependendo das distintas formas de cortar o extremo visível, as fachadas adquirem uma textura que as singulariza.




_Exemplos de "tejuelas".

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Amanhä, tomarei o Norte até Castro e Dalcahue. Nesta última povoaçäo, desviarei para Este, com "rípio" sob as rodas, para visitar San Juan, Tenaún, Colo...
Espero chegar às proximidades de Quemchi, terra natal de Francisco Coloane.
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Até uma próxima emissäo, fica um grande abraço a todos, ouvintes e participantes fiéis de Radio Tamarugo.

8 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Quando se lê as aventuras diárias parece que nem todos os minutos tem os mesmos segundos...isso é truque para prolongar a vida...
Bomcaminho
isabelbarata

1:44 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Actualizações frequentes, hein?! Que luxo!
Quero só mandar-te um beijinho e perguntar se tens visto o teu e-mail. Se puderes, dá-lhe uma vista de olhos e diz-nos qualquer coisa para ficarmos mais descansados.

Até breve!

3:25 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Hey Joe!

Cheguei à conclusão que mesmo por entre subidas enlameadas, chuvas torrenciais e petiscos austrais de alto valor calórico, andas mais rápido que eu.
Ao ler o capítulo anterior desta tua(nossa) história, pensei que tería alguns dias para digerir os kms percorridos. Não me ocorria que por entre floresta densa, os postos de internet proliferassem como na mais cosmopolita das cidades do hemisfério norte... o fenómeno da globalização é, de facto, imparável!

Por entre a sintonia da Rádio Tamarugo, fizeste com que voltasse a ler "O Velho que Lia Romances de Amor". Muito provavelmente cruzaste-te com ele, ou avistaste a canoa que lhe serviu de abrigo, para se defender do puma...

Não tenho por hábito deixar testemunhos de passagem durante os meus passeios. Até porque não uso canivete. Nem para cortar a bucha, nem para "escrever" na madeira das pontes ou nas folhas carnudas das piteiras. Provavelmente, o que aconteceu naquela guarda de ponte, foi resultado de um sonho interactivo que aconteceu numa destas noites recentes, onde eu e todo este grupo de assíduos "ouvintes", seguimos à tua frente para abrir mato, afugentar saltimbancos e atenuar ladeiras íngremes.

Um abraço para ti e para o velho romântico do Sepúlveda.

4:27 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

OLÁ!
Sigo os teus passos ( pedaladas, milhas marítimas , molhas ...) com o prazer de quem assiste a um filme de aventuras . Vou-me documentando e às vezes já sei coisas dos locais que visitas "avant la lettre ". Soube dos teus telefonemas de ontem, 4ª feira. Serei contemplada com algum?
O que quero é que estejas bem e te cuides! Muitos beijinhos, meus e do tio.

5:55 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Olá.
Dentro de um barco durante 24 horas faz-me lembrar as aventuras no creola, arre! Enfim, só pelas semelhanças mais básicas, porque imagino que tenha sido bem melhor e com vistas lindas... Um beijo grande.
Feli

7:30 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Olá João!
Venho dizer que durante esta sua longa viagem, sintonizei todos os dias a "rádio tamarugo"á procura de notícias, fotos e textos muito ricos em escrita e aventura,todos nós ouvintes assíduos desta rádio,perderemos estes relatos mas ganhamos a presença dum rapaz maravihoso, cheio de quilómetros de aventuras, para contar aos amigos e no futuro aos filhos ,netos e bisnetos.Um abraço da amiga de sempre, Assunção

3:12 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

OLÁ, meu viajante!
Será por ventura o meu último texto para a Rádio Tamarugo. E quantas coisas eu aprendi nesta onda! Obrigada por isso mesmo.
Já deves estar em Santiago, bem acompanhado. Saboreia bem esses momentos e mais um beijo meu.
Tia

2:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

boas joão
é possível que se desencontrem, mas o Sérgio fartou-se da américa central e vai-se dirigir a Sul, assim, por aí ou por cá, dá-lhe sugestões ou simplesmente um abraço, sergio.r.cardoso@gmail.com

e daqui levas um abraço meu, um beijo da Lua, outro da Violeta (leva quase 5 meses de gestação) e um da cygny

6:16 da manhã  

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