quinta-feira, julho 26, 2007

O hospede de Vishal.



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Dia 72, 4995 Km. McLeod Ganj, India.
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Deixei Katra por volta da hora de almoco, com timidos bagos de chuva que nao mudaram de temperamento ate cerca de uma hora depois.
Pedalo pela mesma estrada onde tinha passado ha dois dias. Desta vez, gozando do sentido descendente do terreno. O piso nao e do total agrado dos meus pulsos, assim como da bolsa de guiador que ja traz rachado o aro estrutural e do alforge esquerdo que entregou um dos encaixes ao fraco cuidado do sistema de bagagens da Gulf Air.
Apesar de combalida, a dupla vai aguentando e continua a avancar, contornando as dificuldades que o terreno e o clima nos apresentam e os ligeiros problemas mecanicos que, inevitavelmente, vao surgindo.
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Comeca a chover com maior intensidade e refugio-me num prato de arroz com lentilhas e duas rodelas de chapati.
O aguaceiro nao dura muito. Continuo, em descida, a descrever curvas de alcatrao molhado com bermas repletas de macacos que aguardam comida lancada pelos carros. Camioes Tata nunca deixam de avisar a ultrapassagem com potentes buzinas. Estes sinais sao constantes. A pressao no centro do volante substitui a prudencia, a tolerancia e a cortesia. Como ciclista, sou o penultimo no respeito da hierarquia rodoviaria, logo a seguir a locomocao pedestre.
Na Turquia, pensava frequentemente que as buzinas dos automoveis deviam vir estranguladas a nascenca. Ainda nao tinha chegado a India. Aqui e assumido como uma imprescindivel medida de seguranca... "Blow horn please" esta escrito nas traseiras de todos os camioes. Como se fosse preciso pedir...
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Sempre que paro na berma, algum carro tambem para. Por curiosidade.
"Why are you here?". Respondo com a mesma pergunta. Nao estava em grande nivel de tolerancia. O descanso lateral tinha ficado preso e tentava repara-lo a moda de Neandertal... com um calhau.
Gradualmente, terei que me habituar a estar rodeado de pessoas.
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De Katra, considerei a hipotese de seguir para norte e pedalar por Kashmir onde a natureza e soberba, a julgar pelas imagens. Mas, ataques de granada nas ruas de Srinagar ha apenas dois dias, a captura de um lider terrorista a prever retaliacoes... confirmam que a zona nao esta tao segura quanto isso.
Para sul, alcanco Jammu ao fim de 50Km.
Jammu e considerada a capital de Inverno do estado de Jammu & Kashmir.
Logo ao inicio, encontro uma praca rodeada de degradados palacios. Foram a residencia de um Maraja.
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Palacios em Jammu.

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Desco por uma estreita rua em que cada porta corresponde a uma loja de joias. Dezenas.
O mesmo transito desordenado em que me sinto cada vez mais a vontade.
Numa loja de bicicletas compro um guarda-lamas dianteiro. Trago a frente da camisola pulverizada de lama e aguas menos proprias. No lote de novos acessorios tambem figura uma campainha. Ha que estar de acordo com as normas da casa... Nao e nada, comparada com os decibeis injectados por ar comprimido mas serve para prevenir peoes distraidos.
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Novas aquisicoes.

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Nas "medidas de alojamento" tomei como "tecto" o valor de 200 rupias (1 euro=55 rupias).
Em Jammu, instalo-me no Hotel Broadway, num quarto que mais parece uma cela, por 125 rupias. Para dormir, chega. A ruidosa ventoinha funciona. Sem ventilacao forcada e impossivel dormir com o calor.
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Hotel Broadway. Jammu.



Jammu.

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Nova intensa licao de conducao a sair de Jammu. A definicao completa de caos, com todos os seus componentes, esta presente nas ruas desta cidade.
A medida que me afasto e entro na estrada nacional, o movimento torna-se mais ligeiro e relaxado. Pedalar pela esquerda ja vai sendo um dado adquirido. Tudo e mais facil apos me ter iniciado nas ruas de Delhi.
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O terreno e plano. Os lugares povoados sao muito frequentes, com mercados junto a estrada.
Ainda em adaptacao a comida indiana vou tomando-a em pequenas doses. O resto da nutricao garanto-a a conta de bananas e de um sacalhao de biscoitos que comprei, a quilo, numa padaria a saida de Katra.
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A certa altura sou convidado para uma festa junto a estrada. Trata-se de uma recepcao de peregrinos, onde dancam e servem comida gratuita. Tomo cha. Nao tinha fome.
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Festa.

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Continuo a encontrar muitos peregrinos em bicicleta. Fazem um tour por varios lugares sagrados aqui no norte da India. Pode levar cerca de dois meses. Viajam com quase nada em bicicletas simples. Alojam-se em albergues de peregrinos (Dharamsalas).
Algumas bicicletas trazem "bici-radio". Uma bateria de automovel sobre o porta-bagagens traseiro e um leitor de cassetes + altifalante no guiador.
Sou chamado varias vezes pelos grupos que estao parados a descansar. Querem tirar uma fotografia comigo. O mesmo ja tinha acontecido na subida para a gruta de Vaishno Devi.
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Peregrinos em bicicleta.

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Em Kathua, abandono o estado de J&K para entrar no de Punjab. Existe mesmo uma fronteira com controlo para veiculos motorizados. Fora desta categoria, passo sem parar, autorizado pelo movimento de cabeca do guarda.
10 Km a frente, chego a Pathankot, onde tinha previsto passar a noite.
Entro num hotel para averiguar valores. Falhei a recepcao e entro pela cozinha. "Hello friend!". Os cozinheiros conduzem-me a recepcao.
Pois... too much. 500 rupias e um grande salto para alem do estipulado.
Logo ao lado, apenas tinha passado a perna sobre o quadro da bicicleta... "Are you looking for a room?"
-Yeah, but this was too expensive.
-How much do you want to pay?
-150.
-I have one for 200.
-Let's see.
Acabei por ficar. A ventoinha funcionava. Tinha outra especie de ventilador auxiliado por um pulverizador de agua. O "duche" estava a cargo de um balde... Tudo perfeito.
Aproveito para lavar roupa. Tres t-shirts e o mesmo numero de roupa interior fazem com que esta nunca seja uma tarefa muito demorada.
A grande vantagem e a de pagar um quarto single mas dormirmos sempre dois. Depois de ter entregue uma velha companheira ao lado adverso da lei, tornei-me mais cauteloso. Nessa noite ate dormimos tres. Eu, a bicicleta e uma osga bem nutrida colada a rede da janela.
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Acordo com chuva bastante forte. Enquanto recolho a roupa ja seca no bici-estendal e reparto a carga pelos alforges, o ceu fica limpo. Abandono o hotel e cruzo as pocas de agua contente pela recente aquisicao que cobre o pneu dianteiro.
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Pathankot.


Templo a saida de Pathankot.

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Nesse dia, a estrada estava desenhada sobre alguns desniveis. Vou avancando vagarosamente.
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Suplemento vitaminico.

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Deixo o estado de Punjab e entro no de Himachal Pradesh.
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Durmo um pouco sobre um muro, na berma. Chegaria a Dharamsala, conforme o previsto?
Num restaurante, junto a estrada, paro para comprar agua. Decido-me tambem por uma samosa (chamuca). O rapaz que me serve e muito simpatico e a comida deliciosa. Ao fim da quarta samosa... "Stay here. Why don't you stay? I can show you a temple."
-But... where can I stay?
-My house is large.
-Ok.
Chama-se Vishal. Estuda engenharia automovel. Esta de ferias e ajuda o pai, no restaurante.
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Restaurante.

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Pouco tempo depois, encontramo-nos com os seus amigos nas traseiras da escola primaria. Vao jogar cricket, o desporto rei.
Para mim, foi uma real seca assistir a mais de duas horas de jogo mas o meu novo amigo levava a disputa com seriedade e empenho.
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Jogadores de Cricket.



Espectadores.

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Regressando ja de noite, antes de jantar, ainda visitamos um templo perto de casa.
Vishva Karma Dev, o Deus dos tecnicos e artifices.
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Vishva Karma Dev.

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Janto com o seu pai, sob o comprido alpendre da casa. Arroz, lentilha e tofu em caril. De sobremesa, tres variedades diferentes de manga. Tomo agua de um furo, garante ser de confianca. Ate a data, acho que era mesmo.
O sono e interrompido duas ou tres vezes pelo ladrar do cao. De manha percebo talvez a razao.
Tinha deixado um alforge aberto e o saco dos biscoitos foi violado. Por macacos, certamente. Existem em abundancia na arvore frente a casa. Digo adeus a este suplemento.
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Casa de Vishal.


Vishal.

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Ainda cedo, caminhamos cerca de dois Km's ate a aldeia seguinte. Vishal quer mostrar-me outro templo. Ha feira. Os vendedores ficam aqui por dois meses.
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Feira.

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Este templo e dedicado a Nagni Mata, a deusa que protege as pessoas mordidas por cobras.
Numa divisao, ao lado, estao as pessoas doentes por esta causa.
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As pulseiras, agora oferendas, sao usadas pelas mulheres
durante seis meses apos o casamento.


Templo de Nagni Mata.

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Peco para me mostrar como e o lugar onde os mortos sao cremados (tradicao hindu).
Saimos da aldeia em direccao ao rio e ai, na margem esta o Sham Shan Ghat. Sob um tecto em cimento, suportado por quatro colunas, com uma chamine central, existe uma estrutura em metal onde e colocado o corpo. Apos a cremacao, algumas cinzas sao depositadas no rio adjacente e outras sao levadas para o Ganges num recipiente ceramico.
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Ainda almoco com Vishal e saio em direccao a Dharamsala.
Faco uma parte do trajecto com um grupo de peregrinos ciclistas que vao no mesmo sentido. Quando o relevo torna insuperavel a pedalada em bicicletas com um unico carreto, continuo, deixando os meus colegas entregues a caminhada.
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Peregrinos.

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Farto-me de subir.
Encontro tambem peregrinos a pe, em moto...
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"We like you but not your speed"
Deve referir-se ao "movimento tartaruga"...


Peregrinos em moto.



A caminho de McLeod Ganj.

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As horas de luz deste dia vao sendo cada vez mais tempo contado. Ainda estou determinado a chegar a McLeod Ganj, 10 Km acima de Dharamsala. Curva, apos curva, ja de noite, continuo a subir sempre com a melodia da corrente a chiar por falta de oleo. Devagar, mas avancando.
Sinto-me muito bem. Consigo ja distinguir as luzes do lugar. Nao ha transito nenhum.
A vantagem da falta de luz e a de tambem minimizar o negativo efeito moral que tem a percepcao das subidas.
Chego finalmente. Numa tarde, havia passado dos 400m da casa de Vishal, em Bhadwar, para os 1900m de McLeod Ganj.
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Instalo-me por 200 rupias. A tangenciar o limite do orcamento, o quarto agrada-me e a bicicleta subiu comigo.
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McLeod Ganj e o lugar onde vive Dalai Lama, em exilio. Ha por aqui muito para fazer e visitar.
O clima e totalmente diferente. Esta fresco e nublado.
Vou investigar as possibilidades e entregar-me ao que sera materia para proximo relato.
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Um grande abraco.
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Do mais estranho que tenho encontrado...